Browsing Category País

2084: o ano em que tudo deu certo

Um conto para quem está cansado de ficção distópica, sombria e apocalíptica

Waldyrsson e seu filho estavam saindo da monumental Sala de Concertos Hamilton de Holanda. No passado, aquela construção tinha sido o Estádio Nacional de Brasília, também conhecido como Estádio Mané Garrincha ou “O Elefante Branco”. Eles tinham acabado de assistir a um show multimídia de um jovem saxofonista chinês acompanhado pela OJB, Orquestra de Jazz Brasileiro, sob o comando do veterano maestro Carlos Malta, ainda em plena atividade com seus 124 anos de idade. E ali, caminhando no meio da multidão que saía calmamente da sala de concertos, o filho fez uma revelação que deixou Waldyrsson abalado.

“Eu não acredito no que você está falando!”, disse Waldyrsson, em estado de choque. “Tem certeza de que você quer ser professor do ensino fundamental?”

“Tenho certeza, pai. Já decidi.”

Waldyrsson ficou sem chão. Ele tinha criado aquele garoto para ser jogador de futebol e, se tudo desse certo, jogador da seleção brasileira. Mas no fundo ele sabia que, mais cedo ou mais tarde, esse problema ia acabar acontecendo com seu filho. Todos os garotos da idade dele tinham o mesmo sonho. Eles passaram a vida toda vendo, em todas as mídias, reportagens, documentários e hologramas mostrando os professores nos seus carrões, vestindo roupas caríssimas e sempre cercados de lindas mulheres. Já na década de 2060, o salário médio de um professor do ensino fundamental era 800 milhões de Surreais Novos.

“Meu filho, eu pensei que você fosse mais idealista. Eu sempre ensinei que não se deve dar tanta importância aos valores materiais. Sei que o salário de jogador não é tão bom assim, mas você não acha que é uma coisa sublime poder defender as cores da nossa bandeira?”.

“Não adianta, pai”.

Waldyrsson teve que reconhecer que estava parado no tempo. A situação socioeconômica do país tinha mudado muito desde a Copa do Mundo de 2038, quando o Brasil perdeu de 13 a zero para a seleção da Coreia do Norte…Waldyrsson passou alguns segundos perdido nesses pensamentos, mas logo voltou a prestar atenção ao que o filho falava.

“Eu já tomei a minha decisão, pai. Pensei bem e sei que vou me realizar plenamente na educação. E, além do mais, é um trabalho muito mais bem pago. Não se preocupe. Logo, logo eu vou poder comprar um carro novo para você e para mamãe. Um para cada um. E também um apartamento para vocês, em Paris…Um para cada um!”

“Tudo bem, meu filho”, disse Waldyrsson, mais conformado, “mas não se esqueça de ajudar também o seu irmão mais velho. Aquele salário de Senador não dá pra nada, coitado…”

(texto publicado na Folha de S. Paulo em 6 de junho de 2018)

A primeira aula de tiro a gente nunca esquece

 

O doutor Darth Vader dos Santos e o pastor Herodes da Silveira estavam exultantes naquela manhã. Eles iriam levar os netinhos para a primeira aula de tiro. Vários colegas do PMPC (Partido Macho pra Caralho) tinham recomendado a escola Espingardinha Feliz como um estabelecimento altamente capacitado para a educação de jovens atiradores.

Diego, o netinho do doutor Darth Vader, tinha cinco anos, e Camila, a neta do Pastor Herodes, tinha quatro.

As crianças estavam na idade ideal para começar a atirar. Aprender tiro é como aprender línguas: quanto mais cedo, melhor. Mas os colegas de partido ainda não tinham dado nenhuma dica de cursos de inglês, francês ou espanhol.

Quando chegaram na escola, foram recebidos pelo diretor, o doutor Temístocles Fonseca, um senhor idoso, militar expulso das Forças Armadas, que na juventude tinha prestado serviços de consultoria para o Esquadrão da Morte, no Rio de Janeiro. O Doutor Temístocles foi logo tranquilizando os vovôs, dizendo que a escola não usava o método Paulo Freire. Ali ele adotava o método Brilhante Ustra.

Com muita paciência, o professor Temístocles explicou tudo sobre as partes do revólver e disse que, se eles apertassem aquele negocinho que se chamava gatilho, as balinhas sairiam por aquele cano. Naquele momento, os dois vovôs estavam muito empolgados, lendo nos seus celulares algumas mensagens nas redes sociais esculachando aquele general cadeirante. O professor Temístocles também se interessou e foi dar uma olhada no seu celular. Aí só deu tempo de ouvir o Dieguinho falar com a Camila: “Olha que legal! É por aqui que saem as balinhas!”. Quando o professor tirou os olhos do celular para ver o que acontecia, as duas crianças já estavam com os canos dos revólveres na boca. Depois dos disparos, pedaços dos pequenos crânios e miolos se espatifaram nas paredes do estande de tiro.

Antes de se despedir dos vovôs, o diretor avisou que ia adicionar na conta uma quantia relativa à despesa com a faxina do local.
Quando saíram da escola, o pastor Herodes da Silveira coçou a cabeça e comentou com o colega: “É como dizia o Jair: isso aqui só tem jeito com uma guerra civil… Vão morrer alguns inocentes. Tudo bem. Em toda guerra morrem inocentes”.

 

*Texto publicado na Folha de S.Paulo em 2019.

A Banda do Capitão Pimenta

De repente, ele teve uma epifania, um insight e uma sacada, tudo ao mesmo tempo: percebeu que não tinha nascido para ser presidente e teve a nítida sensação de não saber o que estava fazendo ali. Viu que tinha que mudar os rumos do seu destino. Naquele momento, sentiu vontade de jogar tudo para o alto, formar uma banda de rock e cair na estrada.

Chamou os filhos e os colaboradores mais próximos e começou a fazer planos. A princípio, todos ficaram um pouco perplexos com a decisão, mas ele tranquilizou a galera: “Sei que vocês não cantam nem tocam porra nenhuma, mas para fazer rock bastam três acordes e uma atitude. E Deus está do nosso lado!”.

Depois de um primeiro momento de indecisão, o grupo concluiu que daria tempo de ensaiar um repertório para participar do próximo Rock in Rio. O fato de o line-up do festival já estar fechado não seria um problema. Eles poderiam pedir para alguns amigos eliminarem discretamente uma ou duas bandas menos conhecidas, para abrir espaço na programação. O mais urgente agora era bolar um nome para a banda e traçar uma estratégia de marketing bem agressiva.

Como sempre, as discussões do grupo foram muito acaloradas, mas surgiram várias boas ideias para o nome da banda. O mais óbvio, A Banda do Capitão Pimenta, foi logo deixado de lado. Outros nomes bem cotados foram Pathetic Monkeys, Guns N’ Roses N’ More Guns, The Milice, Os Paramilitares do Sucesso, Ideological Bias, Terraplanistas, Keiroz Abelha e os Laranjas Selvagens, Leftist Nazis e Ustra-Death.

Agora a coisa vai.

 

* Texto publicado na Folha de São Paulo em 2019, e depois incluído no livro PARADAS MUSICAIS.