Categoria Comportamento

A primeira aula de tiro a gente nunca esquece

 

O doutor Darth Vader dos Santos e o pastor Herodes da Silveira estavam exultantes naquela manhã. Eles iriam levar os netinhos para a primeira aula de tiro. Vários colegas do PMPC (Partido Macho pra Caralho) tinham recomendado a escola Espingardinha Feliz como um estabelecimento altamente capacitado para a educação de jovens atiradores.

Diego, o netinho do doutor Darth Vader, tinha cinco anos, e Camila, a neta do Pastor Herodes, tinha quatro.

As crianças estavam na idade ideal para começar a atirar. Aprender tiro é como aprender línguas: quanto mais cedo, melhor. Mas os colegas de partido ainda não tinham dado nenhuma dica de cursos de inglês, francês ou espanhol.

Quando chegaram na escola, foram recebidos pelo diretor, o doutor Temístocles Fonseca, um senhor idoso, militar expulso das Forças Armadas, que na juventude tinha prestado serviços de consultoria para o Esquadrão da Morte, no Rio de Janeiro. O Doutor Temístocles foi logo tranquilizando os vovôs, dizendo que a escola não usava o método Paulo Freire. Ali ele adotava o método Brilhante Ustra.

Com muita paciência, o professor Temístocles explicou tudo sobre as partes do revólver e disse que, se eles apertassem aquele negocinho que se chamava gatilho, as balinhas sairiam por aquele cano. Naquele momento, os dois vovôs estavam muito empolgados, lendo nos seus celulares algumas mensagens nas redes sociais esculachando aquele general cadeirante. O professor Temístocles também se interessou e foi dar uma olhada no seu celular. Aí só deu tempo de ouvir o Dieguinho falar com a Camila: “Olha que legal! É por aqui que saem as balinhas!”. Quando o professor tirou os olhos do celular para ver o que acontecia, as duas crianças já estavam com os canos dos revólveres na boca. Depois dos disparos, pedaços dos pequenos crânios e miolos se espatifaram nas paredes do estande de tiro.

Antes de se despedir dos vovôs, o diretor avisou que ia adicionar na conta uma quantia relativa à despesa com a faxina do local.
Quando saíram da escola, o pastor Herodes da Silveira coçou a cabeça e comentou com o colega: “É como dizia o Jair: isso aqui só tem jeito com uma guerra civil… Vão morrer alguns inocentes. Tudo bem. Em toda guerra morrem inocentes”.

 

*Texto publicado na Folha de S.Paulo em 2019.

Existencialista desde criancinha

No último fim de semana fui convidado mais uma vez a participar de uma reunião da AALCRF, Associação dos Amigos e Leitores da Coluna do Reinaldo Figueiredo. Os membros da AALCRF, que adoram siglas e acrônimos, estavam animados com a próxima Flip, Festa Literária Internacional de Paraty, e queriam saber quais eram as minhas relações com a literatura.

Expliquei que, felizmente, desde a mais tenra infância, fui exposto às grandes obras da literatura mundial. Em casa, tinha à minha disposição uma vasta biblioteca e, além das obras de Monteiro Lobato, que toda criança lia, eu tinha outros livros favoritos. Um deles era “A Náusea”, de Jean Paul Sartre. Gostava tanto do livro que, no carnaval de 1955, pedi à minha mãe uma fantasia de existencialista, como se pode ver nesta foto, feita pelo meu pai. Em outros anos, já tinha saído de índio, cowboy ou pirata, mas aquele foi o meu melhor carnaval. Eu estava me sentindo o próprio Jean Paul Sartre. E para completar, meus pais me ensinaram a cantar a marchinha existencialista “Chiquita Bacana”, de João de Barro e Alberto Ribeiro, aquela que diz: “Chiquita bacana lá da Martinica, se veste com uma casca de banana nanica. Não usa vestido, não usa calção, inverno pra ela é pleno verão. Existencialista com toda a razão, só faz o que manda o seu coração”. Lembrei que fiz o maior sucesso numa reunião de amigos e parentes lá em casa. Meus pais pediram que eu cantasse a marchinha de carnaval e depois recitasse um trechinho de “A Náusea”, que eu sabia de cor. O trecho era este: “E era verdade, sempre tinha percebido isso: eu não tinha o direito de existir. Eu apareci por acaso, eu existia como uma pedra, uma planta, um micróbio…”. Aplausos gerais e comentários do tipo “Que fofo!”.

Os membros da AALCRF ficaram satisfeitos com a minha explanação e as minhas lembranças, mas tinham só mais uma pergunta. Queriam saber qual era o meu gênero literário preferido. Respondi que, atualmente, estou me interessando muito pela autoficção.

*Texto publicado na Folha de S. Paulo em 2017.

 

O descaralhamento do armamento

Atenção para o spoiler: todo mundo morre no final. A coisa começa com uma imagem projetada na tela de um cinema. Na imagem, cinco bandidos apontam armas uns para os outros enquanto trocam frases ameaçadoras. A câmera vai para fora da sala de projeção. No hall do cinema, o vendedor de pipoca aponta uma pistola automática para um cliente e grita: “Salgada ou doce?”. O cliente está com um rifle AR-15 apontado para a cabeça do vendedor e responde: “Com sal, e muita manteiga!”. Perto dali, fora do cinema, no corredor do shopping, uma senhora aponta um revólver calibre 38 para um segurança de terno preto e pergunta: “Por favor, onde é o toalete feminino?”. O segurança saca uma pistola, encosta a arma no peito da senhora e grita: “É no fim do corredor, à direita, por quê?!”. Neste mesmo corredor, a câmera chega até a porta do escritório de uma agência de publicidade. A câmera entra e vai até uma sala de reunião. Na cabeceira de uma grande mesa está um senhor e em volta estão mais seis pessoas. O senhor aponta uma pistola semiautomática modelo James Bond, com silenciador, para as outras pessoas e pergunta: “E aí? Alguém teve uma ideia genial para essa campanha pelo desarmamento?”. As seis pessoas na mesa sacam armas de vários tamanhos e potências, mas todas muito modernas, e apontam para o senhor na cabeceira da mesa. Uma das pessoas responde gritando: “Estamos desenvolvendo o conceito da narrativa, mas precisamos de mais tempo e uma verba maior, porra!”. A câmera volta para o corredor do shopping e chega no elevador, onde um uma mulher entra, aponta para o ascensorista uma pistola cromada, com cabo de madrepérola. Ela pergunta:”Desce?”. O ascensorista aponta um revólver 38 para ela e responde: “Sobe.” A mulher encosta a pistola na cabeça do ascensorista e grita: “Não! Agora vai descer!”. O elevador desce, a câmera sai do elevador e vai para fora do shopping. Na rua, a câmera passa por um grupo de pessoas em volta de um pastor evangélico. O pastor está com uma das mãos na cabeça de um fiel e com a outra aponta uma pistola para ele. O pastor grita: “Sai, demônio! Sai desse corpo que não te pertence!”. O fiel aponta um revólver para o pastor e grita: “Aleluia!”. Perto dali, uma babá está passeando com um bebê num carrinho. O bebê está apontando para a babá uma dessas pequenas pistolas de bolso, que se ajusta perfeitamente na mãozinha da criança. O bebê grita: “Buááá!”. A babá tira da parte de trás do carrinho uma submetralhadora UZI, aponta para o bebê e fala: “Para de chorar, garoto!”. Ali ao lado, no ponto de ônibus, um motorista, com um cigarro apagado no canto da boca, aponta um 38 para um idoso que está na fila e pergunta: “O senhor tem fogo?”. O idoso tira do bolso uma pistola e responde: “Tenho!”. Neste momento, todos puxam os gatilhos.

* Publicado na Folha Ilustrada, em 19 de abril de 2017, com o título de “Atenção: contém spoiler!”.