Categoria Política

O eleito continua a ouvir aquela voz

Pela sétima vez na mesma semana, Jair foi acordado no meio da noite por aquela voz grave, poderosa e ameaçadora. A voz surgia com a mesma insistência daquelas ligações de operadoras de telefonia, e sempre nas horas mais impróprias. Jair não tinha controle sobre aquilo, e não sabia como desligar aquele vozeirão que ecoava dentro de sua cabeça.

“Jair! Jair! Tu estás me ouvindo? Já falei mais de uma vez e não quero ficar aqui perdendo o meu tempo, repetindo eternamente a mesma ladainha. Tu estás surdo, Jair? Já falei que não quero o meu nome envolvido nessas paradas que tu e teu povo estão armando. Depois, se vós fizerdes alguma merda, posso acabar virando réu num desses processos. Jair, que negócio é esse de misturar educação com religião? Vós não sabeis que o Estado brasileiro é laico? Vós quereis usar as escolas públicas para catequizar os alunos que vós considerais infiéis e pagãos? Acho que vós não pegastes bem o espírito da coisa. Jair, vou repetir: a Constituição do teu país diz que o Estado é laico. Laico não é ateu, Jair. Estado laico é o que dá liberdade a todas as religiões, e também a quem não tem religião, sem apoiar ou privilegiar nenhuma opção. Tu fizeste uma promessa solene, diante da bandeira brasileira. Tu prometeste obedecer a porra da Constituição, Jair! Estou avisando: se tu e teu povo continuardes nesse tom nós vamos ter problemas. Eu, com a minha onisciência, já estou prevendo que, em breve, vós estareis incluindo no currículo escolar aquelas teorias de que o mundo foi criado há 10.000 anos, que vós não sois descendentes de macacos e que os dinossauros foram extintos porque não conseguiram entrar na Arca de Noé. Jair, deixa eu explicar uma coisa: a Bíblia não é para ser interpretada ao pé da letra. Aquilo é um monte de parábolas e metáforas! E não fui eu que escrevi. Foi uma grande equipe de apóstolos e marqueteiros, trabalhando ao longo de séculos. Se vós continuardes nessa linha doutrinária, prevejo que, daqui a pouco, vós incluireis nas aulas de geografia a teoria da Terra Plana e outras besteiras desse tipo. É isso, Jair. Espero não ter que ficar ligando toda hora. Essas ligações são caríssimas. Câmbio e desligo.”

*Texto publicado na Folha de S.Paulo em novembro de 2018.

Um gesto de grandeza

Não se preocupem, vai dar tudo certo. Nessa passagem de ano eu usei uma roupa nova e branca, fui na praia, joguei flores para Iemanjá e pulei sete ondas. Depois, comi sete uvas, sete sementes de romã e sete pratos de lentilhas. Guardei as sementes na carteira e os pratos sujos na pia da cozinha, e lá ficarão até a próxima passagem de ano. Pintei as unhas de dourado (para chamar dinheiro), vesti uma cueca vermelha (para ser feliz no amor), fiz uma selfie ao lado de um sapo, copiei a foto sete vezes, enviei a foto para sete amigos e depois enterrei o smartphone numa encruzilhada. Nesse local botei um alguidar com sete charutos, sete fitas de Nosso Senhor do Bonfim e sete fotos do Paulo Guedes. Bebi sete taças de espumante e o que sobrou na garrafa joguei por cima do ombro esquerdo.

Exatamente à meia-noite, no momento em que estava amarrando a sétima fita de Nosso Senhor do Bonfim no sétimo charuto, fiz mentalmente um pedido, só um pedido, uma coisa muito simples. E não era para mim, apenas para a minha satisfação pessoal. Era algo para todo o planeta, para a espécie humana. Pedi simplesmente que, neste ano novo, todos os líderes de todas as nações do mundo fossem capazes de um gesto de grandeza. Mas, pensando bem, não sei se vai dar certo.

 

Jázz, Jézz e Paôlo

Recentemente, aconteceu mais uma reunião da AALCRF (Associação dos Amigos e Leitores da Coluna do Reinaldo Figueiredo) e, depois da assembleia geral, alguns dos membros vieram bater um papo comigo. Passamos um tempo naquela inevitável e obrigatória conversa sobre a atual situação do país, falando sobre os nossos governantes que estão, digamos assim, limpando o cu com a merda. Mas logo resolvemos mudar de assunto e passar para temas mais amenos. E aí alguém quis saber por que, no meu programa de jazz na internet, eu pronuncio a palavra jazz com o A aberto e não com o sotaque inglês, que seria algo como “jézz”.

Expliquei que eu prefiro usar essa pronúncia “carioca” porque acho que tem mais a ver. Afinal, o programa fala dos vários tipos de jazz que existem pelo mundo afora, e cada país tem o seu sotaque, tanto na língua quanto na música. Por exemplo, em países de língua espanhola, o pessoal  fala “Jás” ou até “Yás”, com o sotaque lá deles. Sobre esse tipo de coisa, tem até um caso do escritor espanhol Miguel de Unamuno. Uma vez ele estava dando uma conferência sobre Shakespeare e pronunciava o nome do bardo com sotaque espanhol e não em inglês. Aí duas pessoas interromperam o conferencista para dizer que a pronúncia correta não era aquela. A partir daí, só pra sacanear, Unamuno continuou a palestra até o final, mas falando o texto todo num inglês perfeito.

Voltando ao nosso “jázz”, aqui no Brasil essa preferência não é só minha e nem é nova. Esse jeito de falar aparece até numa famosa canção do Djavan, “Sina”, onde ele rima jazz com a palavra mais: “Pai e mãe, ouro de mina / coração, desejo e sina / tudo mais / pura rotina, jazz”. E tem também a ocorrência do “ jázz” naquela composição de Carlos Lyra, “Influência do Jazz”, que rima jazz com “pra frente e pra trás”. E, mesmo mudando de gênero musical, se eu tiver que falar “rock’n roll”, acho que vou acabar pronunciando “roquenrôu”, como todo mundo faz.

Mas o pior é quando a gente quer falar italiano melhor do que os próprios italianos. Todos os italianos que se chamam Paolo, quando chegam no  Brasil, são chamados de Paôlo. Eles não entendem nada, porque lá na Itália não existe esse nome. Eu conheço um italiano que está morando aqui há 15 anos e já desistiu de explicar que o nome dele não é aquele. Não tem jeito: vai ficar sendo, para sempre, Paôlo.

(publicado na Folha de S.Paulo, em agosto de 2017)