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A fórmula do Dr. Pilsenstein

4 horas da manhã. O silêncio da madrugada é quebrado pelo som das borbulhas nas ampulhetas e balões volumétricos no laboratório do Dr. Victor Pilsenstein. O brilhante químico estava empolgadíssimo porque, depois de vários anos de pesquisas, tinha finalmente descoberto a fórmula. O Dr. Pilsenstein estava com o mesmo entusiasmo que sentiu no século passado, quando conseguiu trazer de novo à vida o carnaval de rua, morto e enterrado desde os tempos do Bafo da Onça. Ele se lembrava agora, com nostalgia, da noite em que invadiu o cemitério para exumar o cadáver, com o auxílio de seu fiel assistente, o corcunda Waldemar. A fantástica ressureição do carnaval de rua tinha sido, até agora, o seu grande triunfo. Mas a descoberta dessa nova fórmula poderia levar seu nome ao panteão do Prêmio Nobel de Química.  

Nos últimos anos, o Dr. Pilsenstein vinha se dedicando também a um serviço de consultoria técnica a vários produtores de cerveja artesanal. E foi a partir daí que ele concebeu esse novo e ambicioso projeto, que envolvia banheiros químicos e cerveja, dois elementos fundamentais no carnaval de rua.

Naquela madrugada, o Dr. Pilsenstein tinha conseguido descobrir uma fórmula economicamente viável de desxixização da urina depositada nos banheiros químicos e sua posterior cervejização. Graças à essa descoberta, o material seria instantaneamente transformado em cerveja, e poderia ser reutilizado ali mesmo. Depois da passar por um aparelho de filtragem e purificação, o líquido se transformaria num saboroso chope dourado, passaria por uma serpentina e seria servido, no capricho e estupidamente gelado, aos foliões e mijões sedentos.

Com essa combinação de banheiro químico e choperia autossustentável, o Dr. Pilsenstein tinha encontrado a solução para um grave problema do carnaval de rua. Os foliões não mais mijariam nas ruas, fazendo questão de utilizar esses inovadores banheiros químicos, para poder aproveitar o carnaval até a última gota. Agora, era só esperar pelo Nobel.

O eleito continua a ouvir aquela voz

Pela sétima vez na mesma semana, Jair foi acordado no meio da noite por aquela voz grave, poderosa e ameaçadora. A voz surgia com a mesma insistência daquelas ligações de operadoras de telefonia, e sempre nas horas mais impróprias. Jair não tinha controle sobre aquilo, e não sabia como desligar aquele vozeirão que ecoava dentro de sua cabeça.

“Jair! Jair! Tu estás me ouvindo? Já falei mais de uma vez e não quero ficar aqui perdendo o meu tempo, repetindo eternamente a mesma ladainha. Tu estás surdo, Jair? Já falei que não quero o meu nome envolvido nessas paradas que tu e teu povo estão armando. Depois, se vós fizerdes alguma merda, posso acabar virando réu num desses processos. Jair, que negócio é esse de misturar educação com religião? Vós não sabeis que o Estado brasileiro é laico? Vós quereis usar as escolas públicas para catequizar os alunos que vós considerais infiéis e pagãos? Acho que vós não pegastes bem o espírito da coisa. Jair, vou repetir: a Constituição do teu país diz que o Estado é laico. Laico não é ateu, Jair. Estado laico é o que dá liberdade a todas as religiões, e também a quem não tem religião, sem apoiar ou privilegiar nenhuma opção. Tu fizeste uma promessa solene, diante da bandeira brasileira. Tu prometeste obedecer a porra da Constituição, Jair! Estou avisando: se tu e teu povo continuardes nesse tom nós vamos ter problemas. Eu, com a minha onisciência, já estou prevendo que, em breve, vós estareis incluindo no currículo escolar aquelas teorias de que o mundo foi criado há 10.000 anos, que vós não sois descendentes de macacos e que os dinossauros foram extintos porque não conseguiram entrar na Arca de Noé. Jair, deixa eu explicar uma coisa: a Bíblia não é para ser interpretada ao pé da letra. Aquilo é um monte de parábolas e metáforas! E não fui eu que escrevi. Foi uma grande equipe de apóstolos e marqueteiros, trabalhando ao longo de séculos. Se vós continuardes nessa linha doutrinária, prevejo que, daqui a pouco, vós incluireis nas aulas de geografia a teoria da Terra Plana e outras besteiras desse tipo. É isso, Jair. Espero não ter que ficar ligando toda hora. Essas ligações são caríssimas. Câmbio e desligo.”

*Texto publicado na Folha de S.Paulo em novembro de 2018.

2084: o ano em que tudo deu certo

Um conto para quem está cansado de ficção distópica, sombria e apocalíptica

Waldyrsson e seu filho estavam saindo da monumental Sala de Concertos Hamilton de Holanda. No passado, aquela construção tinha sido o Estádio Nacional de Brasília, também conhecido como Estádio Mané Garrincha ou “O Elefante Branco”. Eles tinham acabado de assistir a um show multimídia de um jovem saxofonista chinês acompanhado pela OJB, Orquestra de Jazz Brasileiro, sob o comando do veterano maestro Carlos Malta, ainda em plena atividade com seus 124 anos de idade. E ali, caminhando no meio da multidão que saía calmamente da sala de concertos, o filho fez uma revelação que deixou Waldyrsson abalado.

“Eu não acredito no que você está falando!”, disse Waldyrsson, em estado de choque. “Tem certeza de que você quer ser professor do ensino fundamental?”

“Tenho certeza, pai. Já decidi.”

Waldyrsson ficou sem chão. Ele tinha criado aquele garoto para ser jogador de futebol e, se tudo desse certo, jogador da seleção brasileira. Mas no fundo ele sabia que, mais cedo ou mais tarde, esse problema ia acabar acontecendo com seu filho. Todos os garotos da idade dele tinham o mesmo sonho. Eles passaram a vida toda vendo, em todas as mídias, reportagens, documentários e hologramas mostrando os professores nos seus carrões, vestindo roupas caríssimas e sempre cercados de lindas mulheres. Já na década de 2060, o salário médio de um professor do ensino fundamental era 800 milhões de Surreais Novos.

“Meu filho, eu pensei que você fosse mais idealista. Eu sempre ensinei que não se deve dar tanta importância aos valores materiais. Sei que o salário de jogador não é tão bom assim, mas você não acha que é uma coisa sublime poder defender as cores da nossa bandeira?”.

“Não adianta, pai”.

Waldyrsson teve que reconhecer que estava parado no tempo. A situação socioeconômica do país tinha mudado muito desde a Copa do Mundo de 2038, quando o Brasil perdeu de 13 a zero para a seleção da Coreia do Norte…Waldyrsson passou alguns segundos perdido nesses pensamentos, mas logo voltar a prestar atenção ao que o filho falava.

“Eu já tomei a minha decisão, pai. Pensei bem e sei que vou me realizar plenamente na educação. E, além do mais, é um trabalho muito mais bem pago. Não se preocupe. Logo, logo eu vou poder comprar um carro novo para você e para mamãe. Um para cada um. E também um apartamento para vocês, em Paris…Um para cada um!”

“Tudo bem, meu filho”, disse Waldyrsson, mais conformado, “mas não se esqueça de ajudar também o seu irmão mais velho. Aquele salário de Senador não dá pra nada, coitado…”

(texto publicado na Folha de S. Paulo em 6 de junho de 2018)

O Chapeiro Careca (peça de teatro do absurdo, no estilo Ionesco)

O CHAPEIRO CARECA

 

Personagens: Sr. Messias, Sr. 03, Sr. Donald e o Mordomo Tião.

Cenário: um ambiente brasileiro de classe média, com móveis brasileiros e decoração brasileira. Paredes amarelas, portas verdes e móveis azuis. Numa poltrona está o Sr. Messias, que usa pijama verde com listras amarelas e escreve mensagens no seu celular. Ao seu lado, em outra poltrona, está o Sr. 03, usando terno azul e um boné vermelho, com a inscrição “Faça a Casa Grande de Novo”. Ele também escreve mensagens no seu celular. A peça começa com um longo silêncio. Apenas são ouvidos alguns ruídos produzidos pelos dois aparelhos.

Sr. Messias – Eu sabia! Agora vai todo mundo comemorar a tal chegada do homem na Lua! Tu acredita nisso, 03?

Sr. 03 – The book is on the table!

Sr. Messias – O quê?

Sr. 03 – Nada, não. Eu tô praticando o meu inglês.

Sr. Messias – Essa coisa do homem na Lua foi uma das maiores fake-news de todos os tempos! Foi aí que tudo começou! Depois falaram que tinha ditadura no Brasil. Depois disseram que tinha tortura no Brasil, que tinha racismo no Brasil, fome no Brasil, desmatamento no Brasil. Nada disso existe!

Sr. 03 – E a girafa?

Sr. Messias – Não existe!

Sr. 03 – E o clitóris?

Sr. Messias – Não existe!

Som de interfone. O Mordomo Tião (caracterizado como o comediante Tião Macalé, com roupa de mordomo) atende. Depois, tampa o bocal e sussurra para o Sr. Messias.

Mordomo Tião – É o Sr. Donald.

Sr. Messias – Tião, vai lá dentro, dá uma guaribada na maquiagem e volta para abrir a porta.

O Mordomo Tião sai de cena rapidamente, e volta com a cara pintada de branco. Abre a porta.

Mordomo Tião – Yes, Sir!!!

O Sr. Donald entra na sala. Nesse momento, ouve-se uma versão orquestral do hino dos Estados Unidos da América. O Sr. Messias e o Sr. 03 se levantam e fazem uma saudação com o braço direito esticado para o alto e, com a mão esquerda, coçam os respectivos sacos. O Sr. 03 conduz o Sr. Donald até a mesa de jantar. Enquanto eles se acomodam, o Mordomo Tião traz uma bandeja verde e amarela para a mesa.

Sr. 03 – The hamburger is on the table!

Todos olham ansiosamente para o Sr. Donald, enquanto ele prova um pedaço do alimento.

Sr. Donald – This hamburger is fried…is…frito! Not good! The real hamburger is grilled…is…grelhado! (Aponta para o Sr. 03) You’re fired!

FIM.

* Esta foi a última coluna da série que começou a ser publicada em 5 de abril de 2017, toda quarta-feira no caderno Ilustrada, da Folha de S. Paulo.